sábado, 10 de outubro de 2020

Autonomia universitária, legitimidade democrática e supremacia judicial

Cláudio Ladeira de Oliveira. 

Professor de Direito Constitucional. UFSC

 

        O min. Edson Fachin apresentou ontem, 09 de outubro, seu voto na ADI 6565, movida pelo Partido Verde contra dispositivos da legislação federal que tratam do processo de escolha dos reitores das universidades federais. De acordo com as regras atualmente vigentes, compete à comunidade universitária apresentar ao presidente uma lista tríplice de candidatos à reitoria, cabendo ao presidente da República a autoridade para escolher o reitor dentre os três integrantes da lista.

No entanto, de acordo com Fachin, no que foi acompanhado pelo min. Celso de Mello, o presidente deve obedecer os seguintes requisitos:

“(I) se ater aos nomes que figurem na respectiva lista tríplice; (II) respeitar integralmente o procedimento e a forma da organização da lista pela instituição universitária; e (III) recaia sobre o docente indicado em primeiro lugar na lista”.

Como é possível perceber, o ítem III retira do presidente qualquer discricionariedade no processo de escolha, tornando sem efeito regras definidas na legislação e no decreto que hoje regulam a matéria. Caso o voto de Fachin prevaleça no plenário, será uma considerável interferência do tribunal em matéria de natureza essencialmente política, ainda que sob a justificativa de preservar a autonomia universitária. Mais uma vez, o STF terá legislado ao invés de julgar, extrapolando suas competências de “guardião da Constituição”, agindo como “soberano constituinte”.

Existem ao menos duas questões que precisamos distinguir:

1)      A legislação deveria permitir ao presidente esse poder de escolha?

2)      O procedimento estabelecido na lei e nos decretos é constitucional?

O voto de Fachin promove uma confusão típica da hiperjudicialização que caracteriza a maior parte da jurisprudência e doutrina constitucional majoritárias nas últimas décadas. Em síntese, Fachin não gosta do procedimento estabelecido em lei e prefere outras regras, que limitem a discricionariedade do presidente. A seguir apresenta sua preferência legislativa como se ela resultasse de uma “interpretação” da constituição, do princípio da “autonomia universitária”. Aliás, é gozado, mas como observou o cientista político Alberto Carlos Almeida, o próprio Fachin parece ter mudado radicalmente de idéia desde 2016, quando do julgamento do MS 31771 afirmou a tese de que a discricionariedade da escolha presidencial é perfeitamente constitucional.

O fato é que não há absolutamente nada no texto da Constituição que proíba o modelo atualmente definido na legislação. O texto constitucional, no art. 207 caput, estabelece que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Ora, não é possível interpretar esse enunciado como sinônimo de “total independência política para a escolha de seus dirigentes”, que é o que de fato o voto de Fachin ao final estabelece. Afinal, uma universidade pode gerir seus assuntos de forma “autônoma”, ainda que no processo de escolha de seus dirigentes a opção de gestores diretamente eleitos pelo povo possua algum peso.

De todo modo, Universidades Federais não são “poderes de Estado” e a autonomia de gestão dos recursos públicos e a liberdade de cátedra não são conceitualmente sinônimos de “soberania política”. Na verdade, mesmo um poder de Estado como o Judiciário não é imune à “interferência” do presidente da República, vide a autoridade do Presidente e do Senado quanto à composição do próprio Supremo Tribunal Federal. Ainda que minha posição pessoal seja a de que o presidente deve indicar o primeiro colocado nas listas tríplices, se o STF deseja mesmo atuar como “guardião” da Constituição – e não como um soberano que estabelece a constituição de sua preferência – então o tribunal deveria respeitar as regras constitucionais que reservam ao congresso nacional a competência para legislar sobre essa matéria. Na verdade, penso que deveríamos inclusive discutir a reforma do processo de escolha para incluir o Senado Federal no processo de escolha. Mas isso, obviamente, deve ser feito pela vista legislativa e não pela usurpação judicial de competências legislativas. Afinal, a legitimidade democrática é também um valor a ser promovido, certo?  

Por fim, não devemos ignorar o risco sempre implícito nesse tipo de altruísmo judicial: o risco de que o tribunal - ainda que de boa-fé - se aproprie de uma pauta “do bem”, “progressista”, para reforçar o já descomunal poder político que o sistema judiciário detém no Brasil. Afinal, se representantes eleitos pelo povo estão inteiramente subordinados, sem qualquer margem de escolha,  às decisões de setores da burocracia pública (as universidades), por que não estariam também obrigados a respeitar as escolhas de listas similares do poder judiciário e ministério público? Em tal caso, uma bandeira “democrática” (a autonomia universitária) estaria sendo apropriada para reduzir ainda mais os escassos mecanismos de responsabilização democrática que a Constituição estabeleceu para os poderes de Estado, promovendo arbitrariamente uma maior elitização dessas instituições.


Leia o voto do min. Fachin aqui 


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