sexta-feira, 23 de outubro de 2020

As oportunidades que a crise oferece. E o STF de Victor Nunes Leal e Sepúlveda Pertence.

Cláudio Ladeira de Oliveira

Professor de Direito Constitucional, PPGD/UFSC

O ministro do STF Luís Fux afirmou hoje que acredita que o tribunal por ele presidido provavelmente será o arbitro final da decisão sobre a vacinação contra a covid-19. As palavras de Fux:

"Podem escrever, haverá uma judicialização, que eu acho que é necessária, que é essa questão da vacinação. Não só a liberdade individual, como também os pré-requisitos para se adotar uma vacina" (veja a reportagem aqui)

Se a afirmação do ministro fosse uma mera previsão de que o STF julgará ações sobre o tema, ele teria toda razão. Afinal, nada mais esperado que inúmeras ações sejam propostas, sobretudo devido à conjunção de dois fatores: a ampliação das competências políticas da Corte, que às vezes decide como se fosse uma assembleia constituinte permanente, e o gigantesco conflito político surgido a partir da pandemia. Algumas ações já tramitam na corte (veja aqui), uma delas por exemplo pleitea que o tribunal obrigue o governo federal a adquirir determinada vacina. Um pedido que exemplifica bem o ambiente, surgido nas ultimas décadas, de hiperjudicialização das mais variadas questões políticas minimamente relevantes.

No entanto, Fux não se limita a constatar uma obviedade. A sugestão de que, em sua opinião, a judicialização da matéria é necessária para fixar os critérios de vacinação sugere que o tribunal poderá, mais uma vez, extrapolar as competências de “guarda” da Constituição e atuar como um gestor-legislador onipotente. Como toda crise oferece oportunidades, o conflito federativo em torno da vacinação permite à Corte ampliar informalmente ainda mais suas competências políticas, que já são imensas. Oferece também uma bandeira e tanto: proteger a saúde pública promovendo a vacinação e combatendo a pandemia.

Mas se por um lado é inevitável que um conflito dessa natureza demande uma decisão do tribunal, por outro é fundamental que a Corte procure decidir observando os limites de suas competências institucionais. Por isso, ao invés de reivindicar para si os poderes de gestão da saúde pública nacional, o STF deveria se limitar a identificar qual é a competência dos entes federados nesta matéria. Por exemplo, uma possível decisão seria reconhecer a autoridade dos governos estaduais para a aquisição da vacina e fixação dos critérios de vacinação, inclusive a eventual obrigatoriedade. Uma tal posição seria coerente com as decisões tomadas pelo tribunal logo nos meses iniciais da pandemia, nas ações constitucionais que discutiam exatamente o conflito de competências entre a União, Estados e Municípios para adotar medidas de enfrentamento da pandemia, em especial a ADI 6341/DF e a ADPF 672/DF. À época, eu e o colega Guilherme Soares redigimos um pequeno artigo (“Federalismo Emergencial em Construção”), no qual afirmamos que essa era a tarefa da corte e não “ponderar” valores abstratos como “proteção à saúde” e “preservação da economia”, definindo assim as medidas de enfrentamento. Portanto, o tribunal deveria se limitar a “definir quem detém autoridade política para decidir.” O mesmo segue valendo agora.

Ainda na mesma entrevista, Luís Fux fez outra afirmação digna de nota: "meu sonho é fazer com que o Supremo volte ao respeito da época de Victor Nunes Leal, dos grandes juristas, Sepúlveda Pertence.” É um projeto que, se concretizado, faria bem ao tribunal e ao país. Mas se Fux é mesmo fiel a esse sonho, então deveria dirigir seus esforços para que o tribunal adote uma postura institucional de autocontenção ao decidir sobre matérias de políticas públicas, uma característica marcante daquela corte e dos ministros citados. Afinal, para ser respeitado como um tribunal, é necessário que a instituição não se comporte como legislador-gestor universal. E quanto a isso, a crise oferece uma excelente uma oportunidade, pois permite que a Corte adote uma postura de auto-contenção, reconhecendo as competências dos entes federados para o enfrentamento da pandemia, sem no entanto impor ela própria políticas públicas de sua preferência

 



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